O FUTURO DA MEMÓRIA

Por Bernardo Farkasvölgyi//

Em uma Belo Horizonte nova e fervilhante, um sobrado da Avenida Brasil, o primeiro de dois andares da região, foi construído por João Gasparini, vindo da Itália, em 1927. Ele morou com a família na parte de cima e no térreo havia lojas para serem locadas. João (que muito provavelmente se chamava Giovanni) era dono de uma olaria na região, a Olaria Gasparini, próxima à sua casa.

Nessa época as casas eram grandes e seus quintais ainda maiores. Justamente nesse imenso quintal, percebendo o crescimento da cidade, em 1932 o imigrante decidiu construir ali outros dois imóveis. A avenida Brasil era calçada, com uma única mão de direção e no centro tinha frondosas árvores de fícus (retiradas do local no final da década de 1970).

Na Rua Padre Marinho, também calçada, sempre passavam os charreteiros que faziam passeios pela cidade, indo do Parque Municipal à Praça Floriano Peixoto. Abraçadas por esse contexto, aquelas três edificações, com suas lojas e todo o movimento de suas esquinas, a partir da década de 1940 – e por quase meio século – tornaram-se um ponto de referência no bairro Funcionários, ficando tradicionalmente conhecidas como “Comércio do Conjunto”.

 Por que estou contando essa história? Por que ela é necessária num momento em que parece que estamos perdendo a conexão entre passado, presente e futuro. Se tem uma sensação que esse período de pandemia tem causado é, definitivamente, uma confusão generalizada em relação ao tempo. Pra alguns parece que ele está passando lentamente, pra outros parece que está voando: “o ano começou outro dia e já estamos na metade dele…”. Então, nada melhor do que falar de uma coisa que, pra existir, estabelece continuamente conexões entre o ontem, o hoje e o amanhã: a arquitetura.

Pois bem, nos últimos dias pude ver finalizado um projeto que realizei junto com minha equipe e que envolve justamente as casas e a história que o italiano João começou a construir quase 100 anos atrás. Projetamos um edifício residencial cuja contrapartida seria a restauração das antigas casas, numa situação na qual convivência, equilíbrio e conversas entre novo e antigo eram fundamentais. O novo edifício de apartamentos, com o seu design contemporâneo, possibilitou uma nova vida para as casas que, por maior valor histórico que pudessem representar, estavam em situação de semiabandono. Com o novo projeto as casas voltaram ainda mais vivas para o cenário urbano, retomando seu uso comercial e a sua beleza que, mesmo de um outro tempo, encanta os olhos de agora.

É inegável que o percurso da vida de uma cidade deixa nela seus inúmeros vestígios, frutos da passagem do tempo, do inevitável processo de crescimento daquele lugar, bem como dos eventos vividos por seus habitantes. Esses sinais da história e evolução de uma cidade se misturam quase que com a própria ideia da arquitetura, pois é justamente através dela que uma cidade ganha corpo, contornos, feições e, claro, identidade.

Estamos perdidos em relação ao tempo ou sobre como será o nosso futuro? Dá pra aprender com as cidades. Os centros urbanos consolidam a sua trajetória justamente através dessa contínua releitura daquilo que foi, do que se torna e do que será. Com certeza as cidades do futuro vão levar em consideração tudo isso que estamos vivendo agora. Aquilo que vivemos e construímos até agora, e tudo pelo qual estamos passando no presente, servirá para plasmar a cidade que ainda está por vir.

Juntar tradição e inovação é um recurso indispensável para melhorar aquilo que herdamos e introduzir novos valores contemporâneos, físicos e simbólicos, capazes de consolidar e enriquecer a realidade que já conhecemos. Uma coisa é certa: uma cidade não pode ser congelada “in vitro”. A nova arquitetura pode e deve coexistir naturalmente com a antiga, porque sempre foi assim na história da humanidade. Basta pensar que a arquitetura do passado também era contemporânea na época em que foi projetada e construída. Criar uma conversa entre o novo e o antigo representa para as nossas cidades estarem abertas a novas histórias para se contar. Como a história do João que agora é nossa, e a nossa que será de quem ainda está por vir.

JORNAL DA CIDADE BH / Edição de 19 de junho de 2020